sábado, 24 de maio de 2014

"O Código avança"



Fredie Didier quer que 2014 seja sossegado. Cancelou os compromissos que envolviam viagens longas e afastou-se das aulas, na Ufba e na Faculdade Bahiana de Direito. "Há momentos em que é preciso voltar a estudar, ficar quieto", diz, descalço, na sala do seu apartamento, no Horto Florestal. É um momento que encontra eco nos últimos três anos. Livre-docente pela USP e dono de uma biblioteca com sete mil obras, 34 assinadas por ele, Didier é referência em direito processual civil, o que o levou a coordenar a comissão de juristas que revisou o novo Código de Processo Civil, que tramita na Câmara dos Deputados desde 2011. Aprovado em 26 de março, o texto final segue agora para o Senado - Didier foi autor da proposta original, em 2009, antes de ir à sanção da presidente. Não é pouco o que está em jogo. Basta dizer que, excetuada a esfera penal, os demais ritos processuais são regulados por esse conjunto de normas. "O primeiro código é de 1973. Esse será o primeiro que começou e terá terminado em um regime democrático. Daí a dificuldade na tramitação", diz Didier. Nesta entrevista, ele fala sobre a atuação do STF e a publicidade que a corte ganhou no último ano, o que, em sua opinião, "qualificou a sociedade brasileira".

A Câmara dos Deputados aprovou a redação final do novo Código de Processo Civil (CPC). Quais as mudanças?

O CPC disciplina como o Poder Judiciário funciona, como os juízes e tribunais poderão prestar justiça. Então, é um instrumento de controle do poder do estado e que garante uma série de direitos para quem vai à Justiça. Uma novidade do novo código é que ele estabelece um sistema de respeito aos precedentes dos tribunais superiores, o que significa que, quando um tribunal superior (Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal) definir a interpretação da lei ou da Constituição, essa interpretação terá de ser acatada por todos os juízes e tribunais do país. Isso fará com que processos que discutam uma mesma tese andem mais rápido e que as pessoas que estejam na mesma situação sejam tratadas da mesma forma - e não como é hoje, em que você tem uma pulverização dos processos, que caem nas mãos de juízes que pensam de forma diferente e cada um dá a sua decisão. Hoje, pessoas na mesma situação vão ao Judiciário e recebem soluções diversas. O novo código refuta isso. Outra mudança é que o processo passará a ser organizado de modo a prestigiar a vontade das partes. No sistema atual, o processo é presidido pelo juiz, que praticamente ignora a vontade das partes. Um exemplo: não será mais permitido que um juiz deixe de examinar um pedido por questões formais, sem antes dar à parte a possibilidade de corrigir o problema. Já houve casos em que os pedidos não foram apreciados porque faltaram dois centavos no pagamento das custas, porque a cópia do carimbo estava ruim, porque um número foi preenchido errado. São casos reais em que juízes deixaram de examinar pedidos por firulas processuais. O código combate severamente isso, cria mecanismos que facilitam a aceleração do processo.

Mas o problema da demora dos processos é de legislação ou gestão? Em que medida o novo código possibilita mudanças, se as instituições judiciárias permanecem com a mesma estrutura?Existe um tripé de problemas relacionados à duração dos processos. Há razões normativas (leis que permitem essa demora), estruturais (há ministros do STJ com 15 mil processos no seu gabinete) e culturais (uma cultura de leniência por parte dos sujeitos processuais). A reforma da lei, que o novo código traz, tenta resolver o primeiro aspecto, o normativo. Ao resolver o primeiro, impacta no terceiro, que é o cultural - mudança de lei não muda a cultura, mas pode ajudar. Já a mudança estrutural não depende de lei, aí o problema é político, de gestão dos recursos. Mas, ainda assim, eu já percebo uma mudança nessa estrutura, sobretudo com a atuação do Conselho Nacional de Justiça, que mudou a cara do Judiciário brasileiro.

O código também trata da conversão de ações individuais em coletivas. Qual o critério adotado para transformar uma ação individual em coletiva?O objetivo é regular situações em que a ação individual seja, embora individual, essencialmente coletiva. Se o acolhimento do pedido beneficia a coletividade, é conveniente que tramite como ação coletiva. Exemplo: um morador move uma ação contra uma casa de shows que funciona em um bairro residencial. Qualquer morador pode fazer isso, mas o barulho irá parar em benefício de todos.

Houve participação da sociedade civil na revisão do código?Não teve setor da sociedade civil interessado no novo código que não tenha sido ouvido. Ordem dos advogados, juízes, Ministério Público, defensores públicos, cartórios, oficiais de justiça, leiloeiros, economistas, professores, contabilistas, todos foram ouvidos. Recebemos mais de mil sugestões online, e as audiências públicas foram transmitidas pela televisão e rádio. Eu fiquei impressionado, tanto que minha visão de democracia mudou depois dessa experiência. Nós aprendemos democracia na teoria. Mas quando vivemos a democracia de fato é que vemos que, se o parlamentar for um sujeito disposto a ouvir a população e vocalizar as pretensões dessa população, o povo interfere diretamente na construção das leis.

O jurista José Rogério Cruz e Tucci afirmou recentemente que o texto final doCPC não é tão moderno quanto o seu anteprojeto. O senhor concorda?Na democracia nacional, você não consegue sair de um ponto e ir para o oposto, dar uma guinada de 180 graus, porque a população brasileira é conservadora - e os deputados representam isso. Então, o CPC conseguiu avançar em muitos pontos. O saldo é positivo. O código não repete o que está aí, ele avança.

Os deputados suprimiram do texto o fim do efeito suspensivo das apelações - permanecendo as regras vigentes, em que as sentenças de primeiro grau são suspensas assim que uma das partes apresenta recurso. O senhor acredita na revisão deste ponto pelo Senado?Todo mundo que critica o código, hoje, critica por causa disso, pela manutenção do efeito suspensivo. Os deputados entendem que o cidadão tem direito ao recurso. Se o juiz sentenciou contra, ele deve ter o direito de recorrer. E deve ter o direito de recorrer com o efeito suspensivo. É a lógica dos deputados, que não é completamente errada. Mas acredito, sim, numa revisão.

Os deputados também vetaram a aplicação da penhora online, com o argumento de que os juízes têm decretado "indiscriminadamente" o bloqueio dos bens de empresas. Levando em conta que 41 deputados e senadores são processados, qual a chance de revisão no Senado?Eu não tenho dúvida de que será revisto. Isso foi um retrocesso claro. As restrições à penhora online que a Câmara aprovou na reta final, em fevereiro, merece ser revista. Tenho convicção de que o Senado vai rever. A repercussão política foi ruim.

Durante a confecção do CPC, o senhor acompanhou o julgamento do mensalão? Que balanço faz?O julgamento do mensalão ocorreu ao mesmo tempo em que se dava a tramitação do CPC na Câmara. Os processos acabaram quase que simultaneamente. Por incrível que pareça, o mensalão interferiu muito no CPC. Com sua altíssima carga política, o julgamento mexeu com os sentimentos dos deputados. Por isso que o novo código foi direcionado para limitar os poderes dos juízes. E por isso que se manteve o efeito suspensivo. Todo discurso que era para favorecer o poder do juiz não encontrou eco, e o julgamento do mensalão foi a razão, já que os deputados sentiram o peso da Justiça.

O STF é uma corte constitucional. Mas que também atua como tribunal de recursos, julga casos e toma decisões penais, como no caso do mensalão. Não é um acúmulo excessivo de funções?É uma boa reflexão. Na reforma constitucional de 2004, houve a eliminação de alguns poderes do STF, que migraram para o STJ, mas muitos foram mantidos. O STF é uma corte com muitos poderes. Não há nada parecido na Europa, e nem mesmo a Suprema Corte Americana tem tamanha força.

O STF hoje coordena a TV Justiça e os nomes de seus ministros nunca foram tão divulgados. Que avaliação faz da novidade?Por um lado, isso é muito bom, porque populariza a Constituição, que deixa de ser um documento acessado por um nicho e passa a ser um documento sobre o qual todo mundo tem uma ideia. Nos países em que a sociedade civil é mais estruturada, as pessoas conhecem os seus direitos constitucionalmente garantidos. Não é uma noção técnica, mas uma noção do que pode ou não pode de acordo com a Constituição. Qual é o lado ruim? É a transformação dos julgamentos em cenas, em verdadeiras performances. Alguns momentos do mensalão chegaram a isso. Mas eu acredito que esse é um aspecto temporário, por conta da imaturidade. O amadurecimento, necessariamente, fará com que haja um equilíbrio no uso dessa ferramenta. Nos EUA, as sessões são secretas. Aqui, elas são públicas e televisionadas. É uma publicidade ao quadrado. Mas quem quer imitar os americanos? Algum de nós abriria mão de ver as decisões do Supremo ao vivo? Creio que não.

Fonte: http://www.atarde.uol.com.br/muito/noticias/o-código-avanca-1586822

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